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03 Outubro 2017

Saudação do Ministro Provincial por ocasião da Festa do Seráfico Pai São Francisco

Escrito por  OFMConv-Cúria

“E o Senhor me deu tanta fé nas Igrejas que simplesmente eu orava e dizia: Nós vos adoramos Senhor Jesus Cristo, aqui e em todas as vossas Igrejas…” Test. 4.

Queridos confrades, noviços, pré-noviços e postulantes,

Às queridas Irmãs Clarissas,

Irmãos e irmãs da Ordem Franciscana Secular,

 

O Senhor vos dê a paz!

Renovar-se e envolver-se

            Caros irmãos e irmãs, a frase destacada acima nos revela a filiação do Pai Seráfico São Francisco à Mãe Igreja. A fé que movia nosso Pai é essa: venerar e adorar o Cristo, que está em sua Igreja, com uma profunda unidade ao Corpo do Senhor e súdito aos pés da Santa Igreja, disponível como Ministro e como Servo.

            Neste ano de 2017, nossa família franciscana, movida pela intuição do Pai Francisco, em seu primeiro capítulo de 1217, celebrou um Capítulo Nacional da CFFB, chamado, também, das Esteiras, ao mesmo tempo em que a primeira Ordem recordava da desastrosa bula Ite vos, que dividiu os frades em Conventuais e Observantes nos seus 500 anos de história (1517 – 2017). Ora, ambos os sinais ainda estão presentes entre nós: a unidade a e ruptura.

            Partindo dessa polaridade contraditória entre unidade e ruptura, somos convocados a olhar fixamente para o nosso Fundador e Pai como modelo de homem, mestre e ao mesmo tempo servo, numa profunda integridade de fé. Antes de tudo, a regra áurea de São Francisco é apresentar sempre a pregação viva da própria existência, mansa, pacífica e fraterna, de autênticos cristãos (RnB, 16, 5-7).

Francisco é esse, que em sua vida terrena, sensível à ação do Espírito Santo, quis, para sua Ordem de irmãos, que vivêssemos a comunhão como parcela integrante de nossa vida e membros da Igreja. É evidente que nossa história de família está repleta de rupturas entre nós e com a Igreja, mas também plena de sinais de comunhão, pois a fraternitas franciscana não existe no passado, sendo sempre conotação do presente. Quanto mais próximos do Evangelho, mais fiéis ao espírito originário da fraternidade que, na síntese da espiritualidade primitiva franciscana, tinha o enfoque da perfeita alegria.

Portanto, para refletir a memória de S. Francisco nessa solenidade litúrgica, convido-vos a adentrarmos em dois tópicos importantes na dinâmica da fé da Ordem e da Igreja, parafraseando o Pai Francisco e atualizando sua intuição sagrada: “Francisco, vai e repara a minha casa, que, como vês, está toda destruída”(2 Cel 10). Da ruptura à unidade, da renovação ao envolver-se com a fé na Igreja: esse é ainda hoje o testemunho que a Igreja quer de nós frades menores conventuais e de nossa família franciscana.

1.      Renovar-se

O mandato do crucifixo de S. Damião que fala a S. Francisco: “vai e repara a minha casa” é cada vez mais pertinente para a nossa família franciscana, uma vez que a Igreja, por meio do pontificado do Papa Francisco, tem caminhado rumo a uma atualização constante de métodos para comunicar a fé, sem com isso obstruir nada que seja doutrinário ou evangélico.

Um olhar franciscano por meio do Papa tem revelado ao mundo a necessária renovação de atitudes, posturas e, por fim, de confrontação com os valores da fé. Há dificuldades em muitos de olhar, com o olho dos de fora, o interno de nosso corpo institucional e de perceber a necessidade de renovação e atualização do mistério revelado. Portanto, caros irmãos e irmãs,  para renovar-se é necessário olhar de fora e ter conteúdo acerca do essencial.

Isto não significa tirar o que até hoje nos assegurou, mas ter em conta o que realmente é fundamental, pois Jesus também não veio revogar a lei, mas levá-la à sua plenitude (Mt 5, 17). Trata-se, antes, de peregrinar em profundidade, rumo ao que conta e tem valor para a vida. Fugir dos acidentais para os essenciais provocando mais foco e método na prática da fé. Pois, na prática, muitas vezes nos perdemos nos assessórios em vez de nos sintonizarmos no essencial.

Jesus e Francisco nos ensinam que a relação com o Pai não pode ser uma fria aderência às normas e leis (acidentais), nem o cumprimento de certos atos exteriores que não conduzem a uma mudança real de vida. O nosso discipulado “franciscano” não pode ser motivado simplesmente por um costume, porque dispomos dum documento de profissão religiosa ou ordenação presbiteral, como ministério, mas deve partir duma experiência viva de Deus e do seu amor como essencial. Na experiência essencial é possível  encontrar humanidade deliciada e espiritualidade encarnada, pois sem afeto e sem atos a experiência não existe. O essencial na vida do franciscano é sentir, tocar e amar em nome do Senhor. Isso o imita perfeitamente.

Deste modo, o discipulado franciscano, a partir do que é essencial, não pode ser concebido como algo estático, mas num movimento contínuo para nossos modelos de fé: Cristo e Francisco. Não é simplesmente a aderência à explicitação duma doutrina, mas a experiência da presença amorosa, viva e operante do Senhor; uma aprendizagem permanente através da escuta da vida vivida e da Palavra de Deus, que é a narração da vida escrita sob a graça.

Portanto, partindo do conteúdo do essencial, no discipulado franciscano encontramos suficientes meios para renovação. O primeiro passo é vencer o preconceito de que renovar-se significa aderir somente ao novo. Não é isso! É antes de tudo voltar ao essencial, à graça das origens, com o conteúdo dela, para assim atualizá-la. É reler sem preguiça os sinais, que em volta de nós se nos apresenta, isto é, a realidade de vida religiosa hoje: a crise das vocações e a qualidade delas, a diminuição considerável dos valores cristãos na sociedade, etc. É buscar novo vigor, vontade de crescer, de viver em diálogo com outro universo que não seja o de antes. E isso custa muito a cada um de nós, pois pensar e atualizar é crer, rezar e agir, e isso pra nós é ainda parte de um caminho.  Há de se ter em conta que Jesus, em sua vida pública, instigava os doutores da lei para que saíssem da sua rigidez metodológica (Mc 2,27), para um encontro com o essencial: a vida humana e a graça de Deus. E isso custou-lhe a própria vida.

Desta mesma forma, hoje a Igreja e a nossa Ordem são instigadas pelo Espírito Santo para que deixem as suas comodidades e amarras, e avancem para algo mais substancial e profundo. Bastar-nos-ia conhecer toda a caminhada para a renovação das novas Constituições da Ordem e descobriríamos o essencial. A renovação não nos deve colocar medo, mas esperança. Recorda-se que a Igreja está sempre em renovação “Ecclesia semper reformanda” e a Ordem sempre entre unitatis et fractionis. A renovação requer sempre superar as rupturas abertas do passado e construir caminhos de unidade para o futuro.

Assim sendo, não se renova um organismo, seja espiritualmente, como estruturalmente, como se nos apetece, mas se deve fazê-la “sólida e firme na fé, sem se deixar afastar da esperança do Evangelho que ouvimos” (Col 1, 23). É portanto, o Evangelho a regra de nossa renovação (RB 1). Porém, sabemos que sem a glossa, (verdadeira orientação) somos factíveis de interpretações errôneas. Por isso, S. Francisco diz: “observar o Santo Evangelho” abrindo o horizonte para compreender que aquele que vive e observa é o verdadeiro interprete da renovação. Por isto, o que nos fará crer que a renovação é vontade de Deus será a capacidade de sacrifício e coragem do franciscano, não para nos considerarmos melhores ou perfeitos, mas para respondermos melhor ao chamado do Senhor. O Senhor de tudo, a razão de ser de todos os nossos sacrifícios, convida-nos a ponderar a rigidez de mentalidade quando está em jogo segui-Lo. 

E na nossa família de franciscanos há tantas situações que reclamam de nós o estilo de vida de Jesus, particularmente o amor traduzido em atos de partilha, gratuidade e participação. Por vezes temos a impressão corrente de que esquecemos a rocha firme do Evangelho e nos apoiamos nos assessórios da vida institucional da Igreja, nas mesmices paroquiais e ou de obras infrutíferas.  Quando isso acontece, nós e todos perdemos.

Para melhor nos comprometermos com decisões e ações reais e concretas, precisamos ter os olhos abertos sobre o que está acontecendo no mundo, na sociedade, na Igreja local, na Ordem e na Província em que vivemos. É decisivo nos confrontarmos com a realidade particular, na qual o Senhor nos convidou, e sermos inteligentes para discernir os caminhos da sua vontade e agir decididamente para cumpri-la em espírito de liberdade e humildade.

Renovar-se é um passo necessário se quisermos continuar vivendo e sendo marcantes em nossas Paróquias, Santuários, Colégios, Missões, Mosteiros, fraternidades e tantas outras assistências, tornando-as mais significativas. Ou faremos isso ou o tempo no abocanhará!

Renovar-se é, em um segundo passo, comprometer-se com o dinamismo responsável de toda a vida da Igreja e da Ordem.  Ser “sério” e não permitir que uma mentalidade do “feito de qualquer jeito está bom” nos domine. A forma de fazer a evangelização e a administração do sagrado do Brasil colônia “dos trambiques terceirizados e fraudulentos” ficou lá nos séculos onde a Igreja e Estado se mancomunavam em negociatas obscuras. Hoje, a transparência já é uma exigência de renovação! Não dá mais para se constituir uma comunidade de fé dizendo: “eu não sou um frade administrador, vim pra evangelizar!”e ser omisso nas responsabilidades diante dos confrades, da Igreja e do Estado.  Isso não nos parece evangélico, senão um discurso piedoso, mas descomprometido com a Igreja concreta.  Por fim, a verdadeira capacidade de atualização da responsabilidade evangélica está em comprometer-se, em envolver-se, para formar assim o verdadeiro espírito de fraternidade responsável. Método e foco é o testemunho que tanto o mundo espera de nós franciscanos.

2.      Envolver-se

Partindo do pressuposto de que S. Francisco não se furtava em advertir seus irmãos e irmãs, quando percebia que a postura deles punha em risco não só a instituição, a Ordem, mas a fidelidade evangélica que um dia escolheram abraçar, é que consideramos a palavra envolver-se como um caminho, entendido como discipulado e remédio para a indiferença à novidade de renovação.

O Papa Francisco adota a mesma linha de pensamento franciscano, às vezes usando expressões duras ou até irônicas: convocou os consagrados e consagradas que não se comportassem como “solteirões e solteironas”, mas assumissem a postura de fecundos “pais e mães espirituais”; vive conclamando os clérigos para deixarem a acomodação e irem em saída ao encontro do rebanho, sem ficar tosquiando e explorando sempre as mesmas ovelhas; declarou que sacerdotes corruptos não oferecem aos fiéis o pão da vida, mas servem às ovelhas um “pasto envenenado”; recordou que padres apegados ao dinheiro e a bens materiais, como carros, por exemplo, ferem intensamente o coração do povo e muitas outras “sacadas” que revelam um profundo senso de autocrítica e conhecimento da realidade.

Não há dúvida de que Papa Francisco nos desestabiliza, como S. Francisco aos seus frades da primeira hora. Ele tem sido uma voz profunda e necessária a repercutir, na Igreja e no mundo, verdades do Evangelho, chamando a atenção para novidades e urgências do tempo presente que não podem ser mais desconsideradas.

Envolver-se é nada mais, nada menos, que comprometer-se com o mínimo de seriedade naquilo que nos é solicitado. É colocar a vida e a existência em significatividade para a implantação do Reino de Deus, da Igreja e da Ordem, que, em categoria de valores, é sempre a mesma.  Envolver-se é, na linguagem popular, colocar a mão na massa, ainda que para alguns isso pareça sujar-se, manchar-se. Como Francisco que não poupou esforços para quebrar os protocolos da sociedade e da Igreja de seu tempo (cf. 1Cel 6), ou ainda como o próprio Jesus com seus discípulos, que entraram na seara e comeram as espigas (cf. Lc 6,1), também hoje nos é solicitado que cresçamos em ousadia, num entusiasmo evangélico que brota da vontade de ser mais e melhor, de servirmos mais e melhor, de sermos realmente diferenciados para a Igreja, Ordem e mundo.

E, como franciscanos, somos convocados a envolver-nos e vencermos essa indiferença corporativa que nos faz medianos, operários que não fazem a vinha crescer e produzir, como recorda Jesus em sua parábola sobre o administrador infiel (cf. Lc 16, 1-8). Envolver-se para ajudar a Igreja a crescer, para ajudar o próximo a saciar-se de Deus. Nosso papel é sermos facilitadores e não dificultar nem proibir o Encontro. Não podemos ser frades, freiras ou leigos que levantam continuamente o estandarte do “tudo é proibido” e apoiar a lei do “quanto pior melhor”, a fim de propagar concorrências desonestas e considerar que esta ou aquela obra é minha, apoderando-me de algo que absolutamente o Senhor não nos deu. Devemos sempre estar atentos a entender que a Igreja não é nossa, somos os servos inúteis e incapacitados para termos propriedade, o despego que nos ensinou S. Francisco é o melhor antídoto para este caso (cf. RB 6).

  O Deus de Jesus Cristo é o dono da Igreja, da Paróquia, isto é, da seara. Todos temos um lugar, todos somos convidados a encontrar, nela e entre nós, o seu alimento. Somos meros “servidores” nos recorda o Apóstolo Paulo (cf. Col 1, 23). Portanto, a pergunta que vem à tona ao adentrarmos o tema do envolver-se é: porque dificultar tanto a crescimento do Reino, da Igreja e da Ordem? Ciúmes, inveja ou descaso? O exemplo do Senhor é fundamental para nossa família religiosa, quando viu seus discípulos debatendo que a tarde chegava e era melhor dispensar a multidão para irem a cidade comprar alimento e o Senhor inusitadamente diz: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14, 16), chamando-os a uma responsabilidade de discípulos, de administradores da vinha, dos operários da casa de Deus.

Irmãos e irmãs, somos chamados a comprometer-nos, com mais ousadia, com mais vigor e paixão pelo Pai São Francisco. Falta-nos aumentar o “foco” na leitura franciscana da vida, pois muitas vez nos deixamos dispersar por outras espiritualidades desencarnadas e fora da realidade. Esse passo do “foco em S. Francisco” corroborará para entendermos o que na nomenclatura de frades menores, irmãs menores e leigos menores, portamos com nossa profissão.

A este comprometimento e envolvimento chamamos: trabalho. A exemplo de Jesus, que trabalhou com suas próprias mãos, e de S. Francisco, que lhe seguiu os passos, tornamos presente o Reino de Deus com o nosso trabalho de religiosos, servindo às pessoas com os nossos dons pessoais e comunitários. De fato, “Jesus trabalhava com suas mãos, entrando diariamente em contato com a matéria criada por Deus, para moldá-la com a sua capacidade de artesão. É digno de nota que a maior parte da sua existência terrena tenha sido consagrada a esta tarefa... Assim santificou o trabalho, atribuindo-lhe um valor peculiar para o nosso amadurecimento” (Laudato si, n. 98). Essa é, pois, nossa missão: envolver-nos por meio do trabalho de nossas próprias mãos para o crescimento do Reino, como fermento na massa.

A Igreja também nos convida a um empenho constante de renovação e envolvimento para sermos os discípulos missionários, como foi indicado pelos nossos Bispos, reunidos em Aparecida no ano de 2007: “Franciscanos que saibam ver, julgar e agir, como nos indica o documento de Medellín” (cf. Medellín, 1968); “discípulos missionários que saibam ver a realidade e não tenham medo dela, que examinam a realidade com os olhos da fé e da responsabilidade criativa, e julgam a partir daí. E que arriscam, atuam, comprometem-se”. (cf. Papa na Colômbia. 09.09.2017)

Por fim, peço, por intercessão da nossa Mãe, Nossa Senhora Aparecida, nos 300 anos do encontro de sua imagem, que nos acompanhe em nosso caminho de discípulos, para que, colocando a nossa vida em Cristo, sejamos simplesmente missionários que levem a todos a luz e a alegria do Evangelho.

Em São Francisco,

Frei Marcelo Veronez

Ministro Provincial da Província Franciscana de São Maximiliano Kolbe 

 

 

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