A Igreja evangeliza e se evangeliza com a beleza da liturgia (III)
No nosso itinerário já vimos que “a beleza da liturgia é a beleza da pessoa de Cristo e do seu dom pascal oferecido na comunidade celebrante”. Quando não conseguimos mais ver a beleza da pessoa de Jesus na comunidade celebrante e nos sinais simbólicos da sua presença (cf. SC, n.7), evidenciamos algumas coisas na ação litúrgica que favorece a falta de beleza, ou seja, queremos enganar os nossos olhos.
Falta bom gosto no espaço litúrgico (excesso de toalhas e rendas, exagero de castiçais e velas, altares carregados, multiplicação de cruzes, explosão dos ornamentos florais – “muitas flores matam as flores”...), pouca atenção à música e ao canto, esquecimento do desenvolvimento e da harmonia ritual. Muita decoração, pouca santidade!
Estes são alguns “poucos” exemplos da pobreza do sentido estético que aflige o rito celebrado. Ainda, ao mesmo tempo, temos um retorno nostálgico a liturgia pré-conciliar por parecer mais bela e piedosa esteticamente. Vemos “turistas litúrgicos” que procuram celebrações que correspondem ao seu gosto pessoal, vem fabricada diante dos nossos olhos a perfeita imagem de um cristianismo muito difundido, que recorre a Deus como um potente curador, um mágico – quiçá – um feiticeiro. Um cristianismo não-cristão com espiritualidade pagã e mundana.
A beleza da liturgia não pode estar ligada aos prazeres subjetivos, a verbalizações sentimentais, a devocionalismos meritórios da parte do indivíduo. Uma beleza somente estética não deixa o homem sair de si para elevar-se em direção ao “Totalmente Outro” e aos outros que celebram juntos. Interrogado sobre sua experiência de liturgia, Paul Ricoeur respondeu: “Agradeço a liturgia que me arrancou da subjetividade, ofereceu-me, não minhas palavras, não meus gestos, mas aqueles da comunidade. Sou feliz por esta objetivação dos meus próprios sentimentos; inserindo-me numa expressão cultural sou arrancado da efusão sentimental; entro na forma que me forma; fazendo meu o texto litúrgico torno-me eu mesmo texto que reza e canta” (cf. P. Ricoeur, “Epilogo”, in: Boselli, G. Por uma liturgia mais humana e hospitaleira, 2016).
O caminho a ser percorrido é que a sacramentalidade da liturgia é um ato do Cristo sacerdote (cf. SC, n.7) e, antes ainda, sacramentalidade da própria Igreja, assembleia celebrante (cf. LG, n.1). O sacramento é o gesto eclesial de Jesus em direção ao homem e, assim, o encontro com Cristo toma forma de sinal visível. É um gesto concreto. O gesto litúrgico é visualização do gesto salvífico de Cristo, que se perpetua através da ação da Igreja. Desse modo, é o próprio ato de Cristo que precisa ser visto para atingir a beleza teológica da liturgia. A estética litúrgica funda-se na cristologia do gesto de Jesus.
Este atributo da beleza, vista não enquanto mero esteticismo, mas como modalidade com que a verdade do amor de Deus em Cristo nos alcança, fascina e arrebata, fazendo-nos sair de nós mesmos e atraindo-nos assim para a nossa verdadeira vocação: o amor. A verdadeira beleza é o amor de Deus que nos foi definitivamente revelado no mistério pascal. [...] A beleza da liturgia pertence a este mistério; é expressão excelsa da glória de Deus e, de certa forma, constitui o céu que desce à terra. O memorial do sacrifício redentor traz em si mesmo os traços daquela beleza de Jesus testemunhada por Pedro, Tiago e João, quando o Mestre, a caminho de Jerusalém, quis transfigurar-Se diante deles (Mc 9, 2). Concluindo, a beleza não é um fator decorativo da ação litúrgica, mas seu elemento constitutivo, enquanto atributo do próprio Deus e da sua revelação (Sacramentum Caritatis, n. 35).
A liturgia é bela na medida em que é epifania da graça salvífica de Cristo. A beleza da liturgia não consiste, então, na ostentação, mas na transparência dos gestos do Senhor. Não na exibição de um rito pomposo, mas na sóbria celebração do sacramento. Busque-se mais a nobre beleza que a mera suntuosidade (cf. SC, n.124). Os gestos humanos são enriquecidos em gestos concretos: plenos de amor, salvação e eficácia, conservando o caráter simples e ordinário. Gesto e palavra encontram na liturgia uma correspondência recíproca que confere uma eloquência particular de corporeidade (cf. F. Cassingena-Trévedy, La bellezza della liturgia, 2003).
A liturgia é reveladora do belo. Na liturgia, com Cristo, descende todo o céu na terra, e toda terra sobe ao céu, unidos aos anjos e santos, em uma só voz (cf. SC, n.8). O cristão vive e celebra esta visão. Este é um contemplativo que, exercitando seu sacerdócio, torna-se mediador e comunicador da beleza divina no gesto ritual. Sobretudo, quando faz o tempo e o espaço do mundo contemplar aquele que é fora de todo o tempo e de todo o espaço.
Esta contemplação da ressurreição que se realiza na celebração litúrgica e, em modo único, no encontro sacramental com o Cristo na Eucaristia, comunica a beleza que se revelará a todos na Parusia: “Anunciamos a vossa morte, proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus!”.
Com isso, a beleza de uma celebração litúrgica não depende da beleza arquitetônica, dos ícones, decorações, cantos, vestes sacras, mas da capacidade de deixar ver o gesto amoroso de Deus em Jesus (cf. Piero Marini, Liturgia e bellezza, 2005).
A liturgia é ato salvífico de Cristo e da Igreja. Não depende essencialmente do intelecto, mas baseia-se na encarnação, no gesto salvífico de Cristo e na beleza da sua divino-humanidade. Os gestos litúrgicos atualizam os belos gestos de Cristo que, já por si mesmos, manifestam uma beleza por serem gestos de Cristo para o homem. A liturgia é o lugar do amor doado e acolhido. Tudo isto é visto, de modo admirável, no acolhimento da Palavra e na celebração da assembleia cristã. Com esta compreensão “a Igreja evangeliza e se evangeliza”.
Continua...
Autor: Frei Luis Felipe C. Marques (OFMConv.).
Série "A Beleza da Liturgia": Para refletir sobre a beleza da liturgia, nesta série de artigos, o Frei Luis Felipe (OFMConv) buscou compreender como esta evangeliza o homem e a mulher moderna a partir de 4 perguntas: que coisa é a beleza? A liturgia é beleza? Qual a beleza na liturgia? Como a beleza da liturgia evangeliza a Igreja?
Esta foi a terceira reflexão. Clique aqui e leia os outros artigos da série.