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19 Abril 2019

Ecos da última ceia: A contradição do abaixamento

Escrito por  Frei Emanuel Afonso da Silva por ISB artigos

Semana passada em Roma, mais especificamente na “Domus Sanctae Marthae”,para quem gosta de um bom latim, aconteceu um evento onde estavam reunidos governo e oposição do Sudão do Sul no Continente Africano. Este foi um evento acolhido pelo Papa Francisco no seu desejo de colaborar com as iniciativas de paz no mundo, onde quer que elas aconteçam; porém o Papa não é ingênuo, sabe que estes esforços frequentemente caem no esquecimento ou são descumpridos.

Diante disto, ele resolveu apoiar uma intermediação diplomática, como é acostume acontecer, vale ressaltar a grande vocação diplomática da Santa Sé. Mesmo assim, ele sabe igualmente que a diplomacia sozinha talvez não seja eficaz; e o retiro que aconteceu uma semana antes da Grande Semana era para marcar um inicio ao processo de paz, que como se sabe terá lugar em maio próximo, um capitulo importante no contexto daquele país.

Estas palavras antes colocadas, são um pequeno preludio para o que se segue. E o que se segue trata-se de um gesto, diríamos profético do Papa Francisco em se ABAIXAR e beijar os pés dos lideres Sul sudaneses num eloquente pedido de paz, mais do que isso, um gesto que “exige” dos líderes e de todos aqueles que de alguma maneira tem responsabilidades sobre os mais vulneráveis, se empenhem em iniciativas concretas para que a paz não seja somente um acordo diplomático, mas uma realidade visível em favor do progresso dos povos, como bem afirma o grande Papa e santo Paulo VI na Populorum Progressio: “O desenvolvimento dos povos, especialmente daqueles que se esforçam por afastar a fome, a miséria, as doenças endêmicas, a ignorância; que procuram uma participação mais ampla nos frutos da civilização, uma valorização mais ativa das suas qualidades humanas; que se orientam com decisão para o seu pleno desenvolvimento, é seguido com atenção pela Igreja” (Populorum Progressio 1).

Enfim, mas vamos ao gesto do Papa. Vale ressaltar que este não foi o primeiro Papa a se ajoelhar e beijar os pés de alguém, já Paulo VI havia feito isto no dia 16 de dezembro de 1975 ao beijar os pés do Metropolita Grego Meliton ao saber através deste, que havia sido criada uma comissão Pan-ortodoxa para levar adiante o dialogo entre as Igrejas Ortodoxas e Católico Romana.

Assim como o gesto de Francisco, aquele de Paulo VI também causou estranheza, mais ainda, resistência, critica, mal entendimento, oposição, entre outras atitudes que se possam enumerar contrarias aos gestos de ambos, e por motivos óbvios, os quais estão sempre alinhados ao aspecto da chamada tradição.

Esta tradição seria: o beijo no anel de pescador – como se pescador, ainda mais no tempo de Jesus tivesse anel; beijo nos pés e no joelho do Papa; os caudatários – geralmente mais de dois, para segurar o manto do Papa; o escabelo para o Papa apoiar seus pés; o flabelo feito de penas de avestruz para refrescar o Papa no calor romano; a cadeira gestatória para transportar o Papa durante as cerimonias – vale ressaltar que a função não era somente para que a multidão visse o Papa, como é o caso do atual papa móvel, pois esta cadeira também era usada para o seu ingresso na Missa.

Com isto valem as perguntas: de que tradição estamos falando mesmo? Aquela que nos remete aos tempos “carismáticos” do inicio ou aquela que foi sendo criada, inventada, ajuntada, absolvida durante os tempos e que quase todas não tem outra origem senão nas tradições pagãs da Roma antiga?

A questão que se impõe não é uma critica descabida àquilo que já se aglutinou ao que realmente é essencial ao cristianismo das origens, do movimento de Jesus; mas trazer à luz que o gesto do Papa atual apesar de não estar incluído no elenco dos gestos “tradicionais”, alguns anteriormente citados, na sua raiz mais profunda não é uma “aberração” como querem fazer passar os opositores do Papa com a ajuda da mídia irresponsável.

Assim, parece que os ECOS da ultima Ceia estão muito presentes e ainda causando escândalo em muitos, sobretudo dentro da Igreja e como diz Jesus: “feliz de quem não se escandaliza a meu respeito!” (Mt 11, 6). Assim o gesto da ultima Ceia é a expressão clara e a cruz será a expressão maior, extrema daquilo que foi a vida de Jesus.

O evangelista João diz que “Jesus levantou-se da ceia, tirou o manto, pegou uma toalha e amarrou-a à cintura. Derramou água numa bacia, pôs-se a lavar os pés dos discípulos e enxugava-os com a toalha que trazia à cintura” (Jo 13,4-5). O mesmo evangelista afirma que este gesto causou espanto em Pedro, porque não dizer, um gesto que causou escândalo em Pedro; isto por que a logica de Jesus é inversa àquela dos grandes e poderosos deste mundo como ele mesmo afirma em Mateus: “Sabeis que os chefes das nações as dominam e os grandes fazem sentir seu poder. Entre vós não deverá ser assim. Quem quiser ser o maior entre vós seja aquele que vos serve, e quem quiser ser o primeiro entre vós, seja vosso escravo. Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por muitos” (Mt 20,25-28).

Na cabeça de Pedro e de muitos hoje este “tipo” de Jesus é demais, não cabe nos nossos esquemas de pensamento, na nossa logica sequiosa de poder, tudo muito humano, e não passa disso, Jesus reconhece que é assim usualmente, mas na sua logica e na logica de seus discípulos de ontem e de hoje tudo deve ser diferente, mas será que de fato o é? Onde está essa diferença segundo aquilo que Jesus mesmo preanunciou na sua missão antes e durante a Paixão?

Tanto que quando Jesus anuncia a Paixão pela primeira vez será o mesmo Pedro que o repreenderá acerca daquilo que está por vir: “Deus não permita tal coisa, Senhor! Que isto nunca te aconteça!” (Mt 16,21), certamente sem entrar naquilo que à luz da própria ressurreição dirá o apostolo Paulo acerca de Jesus na Carta aos Filipenses: “Ele, existindo em forma divina, não se apegou ao ser igual a Deus, mas despojou-se, assumindo a forma de escravo e tornando-se semelhante ao ser humano. E encontrado em aspecto humano, humilhou-se, fazendo-se obediente até a morte – e morte de cruz!” (Fl 2,6-8).

Este é o texto da famosa “Kenosis”, uma expressão grega usada na teologia para falar do abaixamento, humilhação, esvaziamento de Jesus. Mas, infelizmente trata-se de um termo usado para fazer um referimento “romantizado” desta realidade abissal do mistério de Deus que escolhe a via mais contraditória para tocar o humano e o humano tocar a Deus – a via da humilhação.

Não é assim que canta o velho Simeão, segundo o evangelista da infância, movido pelo Espirito Santo? “Este menino será causa de queda e de reerguimento para muitos em Israel. Ele será um sinal de contradição – uma espada traspassará a tua alma! – e assim serão revelados os pensamentos de muitos corações” (Lc 2,34-35).

De novo, parece, este não é um termo bom de ser usado, que os evangelhos estão cheios destes sinais de contradição (Mt 9,11), de escândalos e blasfêmias (Mc 2,7), de subversão (Lc 23,2); mas também de “necessidades” como vemos em (Mt 8,20; Jo 4,6, etc). Sim, o movimento de Jesus é um movimento de contestação de todas as esferas, de inversão de tudo aquilo usualmente estabelecido e isto causou o que causou e parece que continua causando repulsas, só que agora não mais entre os mestres e doutores da Lei mosaica, do Templo e da Sinagoga, mas entre os mestres e doutores da Igreja. Basta um de seus pastores “sair” dos padrões já estabelecidos pela tradição, que isso se transforma em um escândalo, uma pedra de tropeço, onde por pouco a fé não é colocada em risco. Disto diga-se: ou é trágico ou é cômico. Que fé é esta?   

Pois bem, voltemos ao gesto papal do abaixar-se... certo, ele abaixou-se, “pior”, ainda beijou os pés daqueles políticos, homens e mulheres responsáveis direta ou indiretamente pela violência extremada em um país, e que as oposições entre eles levaram sempre a morte de muitos, mas este Papa decide mostrar não com palavras, mas como gestos (o de beijar os pés é um deles), que existe uma dimensão das coisas que vai além daquelas que até agora estavam sendo buscadas.  

Seu gesto é tão escandaloso como aquele do Divino Mestre de se levantar, tomar a bacia, a toalha e começar a lavar os pés dos discípulos. Portanto, estamos diante de um gesto de um ancião, que com a sabedoria dos anos, discernindo por entre os acontecimentos os sinais dos tempos de Deus, mostra qual é o escopo daqueles que estão neste mundo com tarefas especificas – naquele caso – os governantes, bem como as Igrejas ali presentes, o escopo de servir e não serem servidos.

Confesso que para além de qualquer sentimentalismo, romantismo, repulsa ou escândalo, este gesto me causou um sentimento de estar “dentro de um cristianismo esquecido das origens”. Sim, me senti como um cristão, franciscano, sacerdote, estudante dentro de um cristianismo que se parece com tudo menos com aquele movimento das origens, que levou Jesus a morte pela Redenção, e os seus discípulos e discípulas a darem a vida nas diversas formas que compreende o termo dar a vida, imitando a humilhação do próprio Mestre.

Peço ao Senhor que se eu não for movido por gestos proféticos, de me abaixar, me humilhar a semelhança Daquele que me chamou, que ao menos eu saiba ler neles o caminho que devo com humildade  retomar, as atitudes a serem repensadas e a entrega sem resistências as moções do Espirito Santo. Que se eu não for capaz de na minha relativa juventude, me abaixar e beijar os pés de alguém, que pelo menos eu seja uma mão estendida, a mostrar onde está o Essencial.

Que o mesmo Senhor, que inverte nossa logica presunçosa, mais uma vez nesta Semana Santa nos mostre o que realmente é essencial e o que não é no caminho de seu seguimento, e ele mesmo colocará em nossos lábios vacilantes as suas palavras: “Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos” (Mt 11,25)

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