Na atenção dada à atividade religiosa, na sua criatividade social própria, importa ter instrumentos que possam articular o pensamento e o imaginário religioso e as diferentes formas de mediação e materialização. Recordem-se as observações de Émile Benveniste (1969) sobre uma das etimologias, re-legere: tornar a ler, colher de novo, voltar a uma tarefa, retomar os elementos e sinais disponíveis com vista a uma reflexão. Estaremos, pois, perante um comportamento humano que procura mais certezas voltando atrás, procurando a confirmação em sinais, palavras ou textos já conhecidos. É claro que uma etimologia não é uma definição, mas pode ser uma via de exploração. Relegere aponta para a ação de releitura dos elementos simbólicos disponíveis, seja por meio do ritual, seja por via do comentário interpretativo, só para citar duas das práticas mais universais. Abordar a religião como atividade simbólica alicerçada numa tradição permite um olhar antropológico sobre a religião «a fazer-se», num percurso histórico em que a instituição da origem, a conservação e a recriação constituem o objeto específico do trabalho religioso. Uma cultura religiosa não existe sem organizações que a regulem e indivíduos que a exprimam, mas isto não implica que essas organizações possam ser analisadas exaustivamente sob o ângulo único da sua capacidade estratégica de reprodução. É necessário não perder de vista que um determinado mundo religioso pode conter, dentro de si, um permanente trabalho de releitura do material simbólico disponível.
A abordagem da religião como modalidade de crença que institui uma tradição permite pôr em evidência um facto frequentemente observado: que não há crença religiosa que não se refira a um material simbólico recebido, a uma herança legada, a uma memória que solidariza o passado e o presente, contribuindo, assim, para diminuir os riscos do transitório ou da mudança agressiva. Neste sentido, a crença religiosa cria um espaço de comunicação, onde o crente é chamado a responder a uma precedência, feita de imagens e narrativas. A dinâmica religiosa declina-se genealogicamente, enquanto relação com uma memória fundadora, transmissão recitada e praticada. Ser religioso é, deste ponto de vista, saber-se gerado, como observou Pierre Gisel (1990).
Ressalve-se, no entanto, que esta atividade simbólica integra a própria mudança: a tradição só sobrevive porque muda. É por isso que aqui se prefere falar de tradição como construção de uma memória crente – não é um depósito, é um tecido. A fixação da tradição não significa a completa impermeabilidade à mudança. Sem essa qualidade estaria impossibilitada de se tornar verdadeiramente «memória» para as sucessivas gerações, em tempos sociais diversos. Maurice Halbwachs, no seu clássico sobre «os quadros sociais da memória» (1925), toma diversos exemplos da história do cristianismo para mostrar como a memória dogmatizada regula a emergência de novas correntes espirituais – em particular, de natureza mística –, por vezes com uma ênfase contestatária. Halbwachs observa que a resistência à petrificação dogmática veio com frequência de grupos religiosos qualificados, como uma espécie de vanguarda espiritual, e não de tendências marginais relativamente às instituições. Halbwachs procurou um ponto de vista que lhe permitisse observar como as instituições absorvem estas resistências. A teia de relações complexas e tensas entre a memória autorizada e as contínuas reativações espirituais é uma das principais fontes de renovação da tradição, uma vez que se compatibiliza a continuidade com a necessidade de revitalizar a sua capacidade de responder a novas necessidades.