Como o senhor analisa o caso do massacre em Suzano?
Rodrigo Ratier* – Não podemos cair num alarmismo como se houvesse uma epidemia psicológica que está se alastrando de uma forma inexorável. Esses casos têm crescido, mas ainda são casos isolados e que acontecem por uma série de fatores, entre os quais destacaria uma tendência para a psicopatia, pelo menos de alguns dos participantes, mas não excluiria também dois outros fatores: a facilidade de acesso a armas — essa uma correlação que está bastante estabelecida, ao menos nos EUA — e a presença facilitada de possíveis fontes para a radicalização desses jovens que acabam se tornando homicidas. Chamaria atenção para o não supervisionado conjunto de mídias digitais que está à disposição de jovens e adolescentes hoje em dia.
O que esse episódio indica sobre as relações interpessoais nas sociedades contemporâneas?
Rodrigo Ratier – Falo a partir do lugar do pesquisador, mas também me preocupo enquanto pai de duas meninas, uma de quatro e outra de um ano. Vou iniciar falando da minha experiência pessoal: passeio muito com meus filhos, vamos a clubes, teatros, parques etc., e muitas vezes estou nesse lugar do pai que, enquanto a criança está brincando ou prestando atenção numa atividade, está no celular. Hoje, muitas pesquisas no campo da medicina e da biomedicina mostram que estamos diante de um vício: procuramos o celular a cada momento de tédio. Há uma ideia de que estamos perdendo alguma coisa se não estamos conectados o tempo todo.
A tecnologia está tirando um pouco do nosso foco nas pessoas. Uma vez eu estava em casa olhando o celular e a minha filha de quatro anos disse: “Papai, você não sai do celular”. Esse foi um dos momentos que me chamou a atenção para a necessidade de se desconectar. Comecei a pesquisar como as áreas da comunicação e da educação tratavam desse aspecto e descobri uma bibliografia rica, que apresenta a maturidadecomo uma das competências midiáticas. Maturidade é basicamente isto: saber quando se conectar e saber quando desconectar. Penso, então, que a desconexão é algo essencial. Essa é uma experiência etnográfica que qualquer um pode fazer. Veja nos restaurantes e no transporte público quantas pessoas estão conversando e quantas estão no celular. A tecnologia tirou bastante o espaço da relação interpessoal, mas o contato é fundamental.
Em artigo recente [Tragédia em Suzano: é preciso repensar o papel do celular em nossas vidas] o senhor chamou atenção para o fato de que o caso que ocorreu em Suzano é um chamado à responsabilidade coletiva sobre a formação infantil e adolescente, mas para isso os membros da sociedade não podem estar ensimesmados com o brilho das telas de seus celulares. O uso das tecnologias e redes sociais têm dificultado a percepção dessa responsabilidade coletiva? Por quê?
Rodrigo Ratier – Num certo sentido, sim. Não quero demonizar a tecnologia, porque ela tem feito coisas grandiosas, como a possibilidade de comunicação instantânea. Além disso, a tecnologia abre portas para um potencial civilizacional muito importante. Mas, por outro lado, a forma como as tecnologias chegaram até nós tem contribuído para esse fenômeno. Primeiro, a portabilidade não era algo que estava previsto, pelo menos nas primeiras ideias de conexão. Muitos inclusive imaginavam que o lugar de conexão seria a tela da TV. Mas a tela da TV, de uma forma ou de outra, é uma tela mais social, porque mais pessoas assistem juntas e aí existe um outro tipo de relação, porque as pessoas podem conversar sobre o que estão vendo. O celular transformou essa experiência em algo muito mais individual e as trocas não necessariamente são com o grupo de convívio mais próximo, mas com pessoas que nunca se conheceram na vida.
Outro aspecto é a estruturação das redes por algoritmos. Essa solução tecnológica que grandes players como o Facebook conseguiram para manter as pessoas mais tempo conectadas as coloca em contato com opiniões com as quais elas concordam. As pessoas ficam conectadas porque ninguém gosta de ser contraditado o tempo todo. Ninguém gosta de alguém que diga “você está errado”, e a tendência é as pessoas abandonarem as discussões se elas forem muito prevalentes. O algoritmo é um lugar confortável para as pessoas. E o algoritmo levado às últimas consequências pode nos conduzir a processos de polarização e radicalização e as pessoas podem ser influenciadas por esses processos.
Além do uso exacerbado das tecnologias e das redes sociais, que outros fenômenos têm contribuído para a ausência dessa responsabilidade coletiva na formação dos jovens?
Rodrigo Ratier – Estamos falando de um fenômeno global da crise dos mediadores tradicionais. A família está em crise num certo sentido. Fala-se muito de famílias desestruturadas. Essa é uma terminologia de que não gosto, mas de todo modo a autoridade familiar — e também não quero soar conservador — e a influência familiar é menor do que já foi no passado. A mesma coisa pode-se dizer da escola, que tem atividades que não correspondem às formas como o jovem está acostumado a interagir. Qual é o jovem que aguenta hoje ficar duas horas ouvindo um professor falar em uma aula magistral, que é o modo como ainda damos aula na universidade? A mídia tradicional, de outro lado, nunca esteve tão desacreditada como hoje, e a mídia tradicional, num país que não tem uma cultura escolar muito forte como o Brasil, é importante na circulação de modos de agir, de categorias de pensamento, na construção do que é o nacional.
Então, todas essas instâncias que poderiam fazer parte da aldeia, digamos assim, estão enfraquecidas. Surgem outros atores que não são os atores tradicionais da aldeia e que não têm uma responsabilidade educacional clara. As redes sociais não têm na sua missão a tarefa de educar. A escola tem, a família tem, e a mídia num certo sentido também tem. Então, esses atores são enfraquecidos por uma conjunção de fatores: mudaram as relações familiares, a escola está numa crise de metodologia, a mídia tem uma crise de legitimidade e, nesse contexto, surgem outros atores que não têm a função de educar.
Qual o papel da escola e da família na educação de jovens e crianças hiperconectados? O problema da escola e da família é de método, de linguagem, de interação, de diálogo ou de quê?
Rodrigo Ratier – Há dois fatores que servem para ambos: um é a disponibilidade e outro é a recorrência. Os membros familiares estão menos disponíveis hoje do que no passado, ou porque têm que trabalhar ou porque estão absorvidos pelas tecnologias, e as crianças aprendem basicamente pelo exemplo. Podemos ter disciplinas sobre ética, mas no fim das contas a forma como agimos é muito mais influente para crianças e adolescentes do que o discurso. Mas esse exemplo, nas famílias, não está tão disponível.
Para a escola há um problema de metodologia, porque a escola ainda tem uma metodologia do século XIX e a estrutura ainda é aquela que mostra a diferença hierárquica entre professores e alunos. As carteiras são enfileiradas e a sala de aula não é um ambiente que possibilita o diálogo. Então, as escolas têm que se repensar em termos arquiteturais e metodológicos, porque muitas aulas ainda são baseadas no livro didático e muito pouco em pesquisas, debates e na construção de desafios, que é como os jovens e as crianças aprendem. A escola tem que favorecer a atividade mental e isso é feito propondo desafios, em que o professor entra para orientar e pode até usar a lousa para sistematizar, mas não pode usar a aula só para ficar falando na frente da classe. Não é assim que os jovens fazem hoje em dia: eles buscam tutoriais, fazem experimentos para saber como gravar vídeos.
A atuação dos jovens nas redes sociais é um bom exemplo de como a escola poderia se renovar para ter metodologias mais ativas. Também seria importante trazer para dentro de si as discussões que importam para os jovens. O trabalho escolar sobre temas como bullying e violênciaainda são trabalhos invisibilizados. Essas são questões para as quais precisamos de profissionais sensíveis e com olhar treinado para perceber o que está acontecendo na escola, a fim de trabalhar essas questões.
Um dos envolvidos no massacre em Suzano tinha abandonado a escola. O abandono escolar não é algo que acontece do dia para a noite. Quais foram os sinais que esse aluno foi dando de que ele estava progressivamente se desinteressando pela escola em geral? Existem formas de a escola alcançar esse aluno antes dele sair? A escola é um espaço seguro para a discussão de problemas como bullying, violência e as temáticas da adolescência, que é uma fase muito difícil? É preciso uma gestão democrática de modo que os estudantes possam se colocar, possam sentir que ali é um espaço onde eles podem conversar e encontrar acolhimento.
Por que, na sua avaliação, jovens optam por se relacionar em grupos da internet em vez de se relacionarem com a família, por exemplo? O que eles encontram no ambiente digital, que não encontram em outras esferas ou instituições?
Rodrigo Ratier – O contato virtual é mais fácil do que o contato cara a cara no sentido de que as pessoas dizem no ambiente on-line o que elas não teriam, muitas vezes, coragem de sustentar no contato presencial. Isso porque o contato presencial nos coloca diretamente com a alteridade e, portanto, as pessoas estão numa posição de ouvir coisas com as quais não concordam. No contato virtual não tem essa ligação e não é preciso fazer essa mediação que envolve o gestual, as emoções, o tom de voz e pode, eventualmente, envolver até, nos casos mais extremos, a violência física.
Retomando um dos pontos que abordei, acredito que o modo como o ambiente virtual está organizado hoje em dia é uma forma para ignorar e diminuir um pouco a perspectiva de confronto, porque o algoritmo protege o contato com o diferente, o indesejável e o desafiante: ele vai te colocando em contato com pessoas que, em geral, estão de acordo com você. O internauta vai vendo pessoas que pensam como ele manifestarem opiniões e vai naturalizando esse tipo de opinião e, quando percebe, já está num momento de radicalização forte e de afastamento, no sentido de desconexão, com outros atores que lhe digam o contrário, que digam “você está errado, radicalizado”. Em certo sentido, o ambiente virtual consegue formar uma comunidade de apoio, que vai dizer “você pode ir contra sua família”, “a mídia está errada”, “a mídia é golpista”, “a mídia quer derrubar o presidente”, “a mídia não nos entende” etc.
Recentemente, circularam notícias na imprensa sobre vídeos da boneca Momo, que incitariam atitudes suicidas em crianças e adolescentes, e há alguns anos também repercutiu nas redes sociais o jogo da baleia azul, que também estimularia a violência e o suicídio. Diante desses casos, muitos pais regulam o acesso dos filhos às redes sociais e jogos e outros entram em pânico. Como o senhor avalia o comportamento dos pais nesses casos? É aconselhável restringir e monitorar o acesso dos filhos às redes, aos jogos e à internet?
Rodrigo Ratier – O controle é fundamental; é a família exercendo a função de família. E, além do controle, deve haver uma fiscalização sobre o conteúdo e o tempo de acesso. Num terceiro nível, é necessário problematizar com a criança o que ela assistiu, perguntando o que achou de um determinado desenho, se ela ficou com medo, por que gosta tanto do desenho, por que não quer assistir etc. Vou chamar tudo isto de mediação familiar: o controle de conteúdo, o controle de tempo e a problematização. A função da família é essa e a medição familiar existe para isso. As mediações são importantes pois podem confrontar uma instância de socialização, que é a mídia, com outra instância de socialização, que é a família. Isso não se confunde com censura nem com crime geracional; penso que é parte do processo de socialização mesmo.
Quando morei na França percebi que os consultórios pediátricos trabalhavam com a seguinte regra: três, seis, nove e doze — que achei um pouco exagerada, mas interessante para vermos como em alguns países isso é uma preocupação de saúde. Segundo essa regra, a criança assiste TV só aos três anos, tem acesso ao videogame só aos seis, ao computador só aos nove e às redes sociais só aos doze anos. Tem uma progressividade que é importante mesmo.
No artigo em que reflete sobre o caso do massacre em Suzano, o senhor questiona “que conflitos resolvemos quando investimos energia em discussões desimportantes, pensando no meme lacrador para calar o ‘outro lado’”. Para além da questão humorística envolvida nos memes, por que, na sua avaliação, os problemas sociais e políticos passam a ser abordados através de memes e quais são as consequências disso?
Rodrigo Ratier – Não demonizo os memes. Toda a linguagem mais telegráfica tem um espaço no sentido de chamar atenção para a discussão, colocar um ponto de vista mais pontual e, nesse caso de humor, ele é muito bem-vindo. Em determinados casos o humor é transgressor e revelador, então, nesse sentido, sou um entusiasta dos memes. Evidentemente que quando a discussão se restringe a esse tipo de comunicação, ela fica superficial e o debate público perde muito com isso — temos visto esse empobrecimento do debate público.
O meme é importante se ele servir como porta de entrada para que as pessoas se aprofundem nas discussões. É mais ou menos como os best-sellers: eles são importantes se servirem como porta de entrada para uma literatura mais sofisticada. Agora, o best-seller que gera um consumo circular só de best-seller, não tem uma função tão interessante. Eu penso da mesma forma com os memes: se você fica preso aos memes sem recorrer a outras formas de linguagem, isso é negativo para o debate público e para a sua própria construção de categorias de pensamento.
Neste mesmo artigo o senhor também questiona as experiências que o mundo contemporâneo tem oferecido aos jovens. Qual é seu diagnóstico? Que experiências deveriam fazer parte da vida dos jovens, a fim de que eles tivessem uma vida mais saudável e feliz?
Rodrigo Ratier – [Risos]. Eu fiz essa pergunta retoricamente. Não tenho a resposta, mas vou tentar responder a partir do lugar de pai e professor. Tenho trabalhado com a hipótese de que há excesso de tempo no ambiente virtual; e tempo é energia, é vida. O ambiente virtualtende a excluir uma coisa muito importante, que é fundamental para a formação de qualquer um: a frustração. Por exemplo, para entrar num relacionamento, basta ir curtindo, para ter alguém que concorde com sua visão política, basta encontrar um grupo no Facebook ou no WhatsApp, para você ter uma visão de mundo, basta se informar com fake news. Para não ter um equilíbrio entre vida pessoal e profissional basta estar conectado 24 horas por dia e responder o WhatsApp de manhã ou de madrugada. Então, tenho trabalhado muito a sério com essa tentativa de desconexão. Nossos jovens são hiperconectados: vejo isso pelos universitários para quem dou aula, que estão todo o tempo on-line. Praticamente não existe uma dissociação entre vida real e vida virtual; é um contínuo que não se acaba. Precisamos mostrar que existe essa distinção e acredito que caminharemos para isso.
Na década de 1990, por exemplo, já havia amplo consenso entre famílias e mesmo entre os jovens de que não se podia ficar o dia inteiro assistindo TV, porque aquilo era ruim. Esse consenso precisa existir também para as redes sociais, para a mídia digital como um todo, pelo potencial aditivo que esses mecanismos têm de radicalização. A tecnologia tem um lado bom e não precisamos demonizá-la, mas ela também exige atenção.
Então, propiciar mais experiências no mundo real seria fundamental para trabalhar a frustração, a empatia e o diálogo, mas não o diálogo de uma perspectiva de uma “varinha mágica”, porque o diálogo é uma coisa difícil: dialogar é se colocar na frente de algo diferente, ouvir ou falar uma coisa que o interlocutor não gosta, trabalhar a mágoa de sentimentos. Não sei o quanto estamos oferecendo de experiência significativa nesse sentido para os jovens.
Eu fiz uma experiência em minha casa: nos finais de semana deixo meu celular desligado. O Ruy Castro fala uma coisa interessante: as pessoas estão com celular, mas na verdade nunca precisam ligar umas para as outras, porque as emergências são raríssimas. Tenho deixado meu celular ligado das 9h às 17h, em horário comercial, e isso tem me feito um bem danado. Voltei a meditar, consigo prestar mais atenção nas minhas filhas, depois das 17 horas busco uma delas na escola, e ela nunca mais reclamou que eu estava no celular [risos]. Tem uma coisa por trás disso, a qual tenho trabalhado muito na minha vida pessoal e procurado entender como os teóricos também têm tratado esse tema, que é a importância da desconexão.
* Rodrigo Ratier é doutor em Educação pela Universidade de São Paulo - FE-USP, com participação no Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior, na Université Lumière Lyon 2. Atualmente leciona no curso de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero em São Paulo. É pesquisador do Grupo de Pesquisa Práticas de Socialização Contemporâneas - GPS-FEUSP e repórter especial da revista Nova Escola.